quinta-feira, 16 de julho de 2009

A cidade perdida da Ford (e não é Detroit)

Livro mostra a excêntrica e malfadada aventura do empresário Henry Ford na selva Amazônica no início do século passado

Na cidade erguida por um dos expoentes da indústria automobilística do século 20, não se vê hoje um único operário. Ruas e ferrovias estão abandonadas, engolidas pelo mato. A vegetação também toma conta das casas que um dia abrigaram famílias de operários. Nas janelas da serraria, os vidros quebrados denunciam que há muito ninguém trabalha por lá. Na torre de 50 metros de altura que sustenta a caixa-dágua, o tempo já apagou a pintura branca em letra cursiva que identificava a companhia que criou aquela cidade - Ford.

A descrição acima não é uma obra de ficção, inspirada num futuro apocalíptico de Detroit - a cidade que foi o berço da indústria automotiva americana e hoje vive uma fase aguda de declínio. Trata-se da realidade presente de Fordlândia, um povoado erguido a mando de Henry Ford na Amazônia no fim dos anos 20 e cuja breve trajetória está narrada no recém-lançado livro Fordlandia: The Rise and Fall of Henry Fords Forgotten Jungle City ("Fordlândia: a construção e a queda da cidade de Henry Ford esquecida na selva"), do historiador Greg Grandin, da Universidade Yale.

Fordlândia nasceu da tentativa de Henry Ford de criar no Brasil uma base produtora de borracha para suprir suas fábricas nos Estados Unidos. E o lugar óbvio era a floresta Amazônica. Localizada no oeste do Pará, a dois dias e meio de Belém em viagem de barco, a vila chegou a ter esgoto, luz elétrica, cinema e até um providencial campo de golfe de nove buracos. Mas a selva foi mais forte e a iniciativa de Ford fracassou. Para explicar a saga, Grandin, que esteve em Fordlândia duas vezes, baseou-se em documentos e entrevistas com descendentes dos primeiros moradores. O mergulho feito pelo autor mostra que o fim da aventura se deveu, como quase sempre acontece, a uma sucessão de equívocos, muitos aparentemente pueris.

Em 1928, quando o primeiro barco da montadora chegou à foz do rio Amazonas, a região já vivia a ressaca do ciclo da borracha. As terras compradas equivaliam a duas vezes o território do Distrito Federal. O problema, como foi descoberto depois, é que elas não serviam para o plantio de seringueiras. Sem planejamento nem especialistas, duas coisas que Ford menosprezava, seguiram-se lutas para combater pragas e arregimentar trabalhadores nos igarapés vizinhos. Após quase uma década tentando fazer com que a Fordlândia vingasse, Ford decidiu criar outra cidade, Belterra, a 100 quilômetros do núcleo inicial. Lá manteve um seringal com 10 000 hectares e 2 milhões de árvores plantadas. Apesar das dimensões grandiosas, a área nunca produziu mais de 1% de toda borracha consumida pela montadora. "Ford gostava de bradar que sua companhia não empregava experts porque eles só sabem o que não deve ser feito", diz o autor do livro. "O barco enviado para fundar Fordlândia estava cheio de cérebros e dinheiro. Mas não tinha botânicos, agrônomos ou qualquer pessoa que soubesse alguma coisa sobre seringueiras e seus inimigos."

A intenção de Ford, afirma Grandin, ia além de estabelecer um simples fornecedor de matéria-prima - o que ajuda a explicar certas extravagâncias. O criador do sistema de produção em massa viu em sua Fordlândia a chance de formar uma civilização nos moldes do estilo de vida americano, temperada com suas excentricidades pessoais. Os quase 5 000 moradores, em grande parte ribeirinhos ou nordestinos fugidos da seca, tiveram de se adaptar a regras rígidas de horário de trabalho e até a uma dieta imposta. No café da manhã, o cardápio era sempre pêssego enlatado e aveia - para que um nutricionista se o próprio Ford poderia definir a alimentação dos trabalhadores? Ele também tentou impor o consumo de leite de soja no lugar de leite de vaca. Em sua lógica, as vacas consumiam demais e rendiam pouco. Grandin narra como as imposições resultaram em motins e dificuldades na consolidação do povoado.

Ford não poupou investimentos nem durante a Grande Depressão. Investiu 20 milhões de dólares na empreitada (quase 235 milhões de dólares em valores atuais), sem nunca ver um único centavo de volta. Fordlândia e Belterra só foram vendidas ao governo brasileiro em 1945, quando Henry Ford II assumiu a montadora. Em troca, ele receberia apenas o valor das despesas para dispensar os operários. O governo brasileiro jamais se preocupou em aproveitar a infraestrutura montada no local. Fordlândia é o retrato da civilização engolida pelas árvores e pelo descaso. Hoje, os cerca de 10 000 habitantes de Fordlândia e Belterra se dedicam sobretudo à plantação de soja e à criação de gado. Paralelamente, tentam promover o turismo. Uma das atrações seria a Casa Número 1, construída para receber Henry Ford - que nunca pisou lá. O apito da fábrica até hoje soa quatro vezes por dia, como se anunciasse turnos de trabalho. Mais do que uma aventura inconsequente, para o autor, Fordlândia é uma parábola sobre a arrogância. Talvez a mesma que ajudou a compor o atual colapso de Detroit.

Fonte: http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0947/economia/cidade-perdida-ford-nao-detroit-482571.html

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