Famílias como a de Verônica e Márcio vêm despertando o interesse de um número crescente de empresas de serviços e bens de consumo. Elas fazem parte da chamada classe D, segmento que concentra 45 milhões de brasileiros, o equivalente a quase 25% da população do país. Sua importância para o mercado está na massa de renda que reúne: 256 bilhões de reais por ano, ou 20% do consumo total. Essa fatia já supera a da classe A, detentora de 16% da renda. Em boa medida, os integrantes da classe D emergiram da E, a faixa da extrema pobreza, nos últimos anos, quando a estabilidade monetária conquistada com o real em 1994 se combinou com crescimento econômico mais vigoroso e maior oferta de crédito. Em cidades do interior ou na periferia das metrópoles, eles ocupam funções como as de auxiliares administrativos, empregados domésticos e operários da construção. Possuem renda familiar entre 804 e 1 115 reais por mês, segundo critério da Fundação Getulio Vargas. "São os ex-pobres. Apesar do orçamento restrito, são pessoas que conseguem juntar dinheiro e comprar bens de consumo", diz Marcelo Néri, chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas e autor do estudo Consumidores, Produtores e a Nova Classe Média Brasileira.
A classe D é delimitada por uma faixa estreita de renda, tanto quando comparada à amplitude da classe E (de zero a 803 reais) quanto à da C (de 1 116 a 4 807 reais). Esse estrato foi definido em 2007, quando a FGV iniciou sua classificação, após verificar que um grande número de famílias tem rendimentos no pequeno intervalo de dois a três salários mínimos. "É uma faixa de transição, que está a um passo da classe média. Uma pequena promoção ou um segundo emprego já permitem que mudem de patamar de consumo", afirma Néri. Ou seja, seus membros tendem a subir para o nível econômico intermediário -- são uma espécie de emergentes dos emergentes. Apenas no recente período de julho de 2008 a junho de 2009, a classe D "exportou" 17,4 milhões de pessoas para a C. Isso não quer dizer que a subida seja automática. Devido aos efeitos da crise, no mesmo período, 7,9 milhões caíram da D para a classe E.
Para as empresas, o desafio é entender o comportamento e os valores desses recém-chegados ao consumo e desenvolver estratégias para vender a eles seus produtos e serviços. "Para falar e ser ouvido pela baixa renda é preciso compreender suas diferenças em relação aos mais ricos", diz Renato Meirelles, sócio da consultoria Data Popular, especializada em estudos de mercado da baixa renda. Dona de um banco de dados com 100 000 entrevistas com consumidores, a Data Popular identificou que, entre outras características, os integrantes típicos da classe D têm aspirações realistas. "Eles valorizam a qualidade e a melhor relação entre custo e benefício, porque para eles o custo de errar é alto", diz Meirelles. "Em compensação, retribuem sendo fiéis às marcas que oferecem isso. Seu objetivo é a inclusão, não a exclusividade."
Esse tipo de comportamento é evidente no mercado imobiliário, que passou a receber mais compradores da classe D com a queda das taxas de juro e o alongamento dos prazos de financiamento. "O cliente de baixa renda não fica analisando alternativas, ele vai direto ao que interessa a ele", diz Tomás Salles, diretor de novos negócios da Lopes, a maior imobiliária do país. Uma prova da objetividade -- e da avidez -- desses consumidores foi dada em setembro. Em apenas 8 horas, os corretores da Lopes venderam as 264 unidades das duas torres do conjunto Vitória Pirituba-Gaivota, localizado na zona norte de São Paulo, gerando faturamento de 24 milhões de reais. "Os empreendimentos para essa faixa de renda são os de maior velocidade de venda hoje", afirma Salles. "Nos meus 35 anos de mercado, nunca vi a classe D ter efetivamente condições de comprar. Agora, esse mercado está explodindo." Com preço médio de 98 500 reais, os apartamentos de dois dormitórios saíram, em empréstimos de 25 anos, por até 300 reais ao mês -- o aluguel de uma moradia em favela pode ser de 500 reais. As vendas foram realizadas pela Habitcasa, braço criado pela Lopes há dois anos para atuar na faixa econômica. Para a Lopes, 37% do número de unidades vendidas e 15% da receita já provêm dos imóveis com preço máximo de 180 000 reais. Neste ano, até agora, a empresa vendeu 3 000 unidades pelo programa Minha Casa, Minha Vida, lançado pelo governo para financiar residências de até 130 000 reais. "Até o final de 2010 venderemos o triplo do que já saiu neste ano", diz Salles.
Os estudos da Data Popular apontam que outro traço que distingue a classe D, bem como a E, é a maior importância que dá aos relacionamentos com familiares e vizinhos. Por isso, criar elos nas comunidades é um passo fundamental. Os sistemas de venda porta a porta propiciam essa inserção. A Nestlé, com marcas tradicionalmente voltadas para a elite, recorreu a essa alternativa há dois anos e meio, quando lançou na periferia de São Paulo o programa Nestlé Até Você. O sistema funciona com mulheres recrutadas nas comunidades pobres para trabalhar em sua vizinhança com a venda de kits de composições diversas como "café da manhã", "culinários" e "lanche", montados com produtos da empresa. As entregas são feitas em domicílio em carrinhos de mão refrigerados. As mulheres abastecem seus carrinhos num microrrevendedor -- outro ponto de apoio na comunidade. Após estender-se inicialmente pelas regiões Sudeste e Sul, o porta a porta chegou em junho ao Norte e ao Nordeste, duas regiões em que a classe D é mais representativa no total da população. O paranaense Francisco Alves foi um dos primeiros a se tornar microrrevendedor da Nestlé. num bairro pobre de Recife. Ele recebe os iogurtes, os biscoitos e outros produtos da Nestlé em caixas e os divide nos kits. Em três meses, seu quadro de vendedores passou de 12 para 28. "Quero chegar logo a 100 vendedores", diz Alves. Ao todo, a Nestlé já credenciou 150 microdistribuidores no país, que contam com 6 000 vendedores, a maioria mulheres. A empresa faturou 1 bilhão de reais em 2008 com vendas para a baixa renda, 15% mais que no ano anterior.
Esse crescimento está levando mais empresas a investir na produção voltada para a classe D. A própria Nestlé inaugurou, em fevereiro de 2007, uma fábrica em Feira de Santana, no interior da Bahia. A divisão de alimentos do grupo Pepsico, dona de marcas como Elma Chips, Doritos, Toddy e Coqueiro, planeja montar uma fábrica na mesma cidade em 2010. Será a segunda do grupo no Nordeste -- a primeira aberta no final de 2005 em Suape, Pernambuco, trabalha perto do limite da capacidade. "No Nordeste, nosso negócio cresce três vezes mais que a média nacional", diz Otto Von Sothen, presidente da divisão de alimentos da Pepsico. Para chegar aos novos consumidores, além de expansão geográfica, a Pepsico fez outro movimento. No final de 2007, comprou, por valor não revelado, a indústria paulista de salgadinhos Lucky. Trata-se de uma empresa fundada há 40 anos por descendentes de japoneses que desenvolveram um modelo peculiar de negócio. Sem contar com vendedores, seus produtos são encomendados por telefone, fax e internet. Os revendedores são bares, mercearias e ambulantes, que fazem os salgadinhos chegar até pontos de ônibus e estações do metrô. Esses intermediários são estimulados pela oferta de uma boa margem de lucro. "Com os produtos da Lucky, como os salgadinhos Fofura e Torcida, chegamos a lugares onde dificilmente entraríamos com a Elma Chips", afirma Sothen.
Na área de serviços, a classe D está impulsionando os negócios em diversas frentes. Um exemplo são as oportunidades criadas pela presença maior de jovens no total da população do que nos estratos mais abonados. Enquanto quase 28% dos membros da classe D têm até 16 anos, a proporção na A é inferior a 17%. Os pais dessas crianças e adolescentes estão dando importância a uma educação melhor e isso está abrindo espaço para empresas do setor que fornecem ensino a preço acessível. Em números absolutos, já há mais crianças de classe D do que da classe A estudando em escolas particulares, segundo dados do instituto Data Popular. Dos 5,3 milhões de crianças matriculadas na rede privada de ensino, 919 000 são da classe D, 79 000 mais que as da elite. Ainda é muito pouco ao se considerar que existem 19 milhões de crianças nessa faixa da população. Mas os números indicam que as famílias estão dispostas a investir em educação. Os próprios jovens mostram-se mais interessados em estudar -- na classe D, 80% dos que têm até 25 anos responderam em uma pesquisa recente que a escola é muito útil para sua vida, ante apenas 65% das classes A e B. O ensino superior já reflete essa tendência. Entre os alunos que ingressaram neste ano na Universidade de São Paulo, 17,5% eram da classe D, enquanto 13,5% eram provenientes das classes A e B. A oportunidade se espraia em todas as faixas do ensino. O grupo Ometz, rede de ensino de inglês com 290 escolas no país, lançou em setembro sua quarta bandeira de escolas, batizada de You Move. Enquanto a principal marca do grupo, a Wise Up, possui mensalidade média de 400 reais, a nova bandeira cobra 150 reais. O preço baixo fez com que 2 000 pessoas procurassem o novo curso nas 32 unidades inauguradas. Para o ano que vem, está programada a abertura de outras 50 escolas You Move e a expectativa é que 40% do faturamento do grupo, de 90 milhões de reais, venha desse segmento. "Queríamos chegar à base da pirâmide. Era o empurrão que faltava para que essas pessoas entrassem na sala de aula", diz Flávio Augusto, diretor do Ometz. Em março do ano que vem, a empresa começará a testar em 70 escolas do Tocantins um sistema de aulas a distância que custará 90 reais por mês.
As oportunidades de negócios na base da pirâmide são amplas e muitas apenas começaram a ser exploradas. Uma das vantagens de quem começa antes é marcar ponto para o futuro. "A entrada na classe D é importante também porque, quando uma família opta por um marca, ela tende a manter esse hábito", diz Eugênio Foganholo, diretor da consultoria de varejo Mixxer. Ou seja, a marca tem a chance de acompanhar os consumidores em sua ascensão econômica e social, processo que, ao que tudo indica, tem ainda muito fôlego no Brasil. "Vimos o que foi possível acontecer com o país crescendo razoavelmente durante cinco anos", diz Marcelo Moura, professor da escola de negócios Insper, de São Paulo. "Se mantiver a média de ao menos 4% de crescimento, em dez anos o Brasil será uma grande classe média. Para as empresas, já ficou para trás o tempo de atender apenas uma elite."
Fonte: Portal Examehttp://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0954/economia/emergentes-emergentes-505359.html
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