Se há oito ou nove anos fosse dada aos analistas da indústria automobilística a informação de que uma hecatombe arrasaria Detroit e só uma das três grandes montadoras da cidade sobreviveria, poucos apostariam na Ford. Naquele momento, a situação de penúria da empresa contrastava com o clima de otimismo na General Motors e na Chrysler. A Ford mergulhara em sucessivos prejuízos enquanto a GM lucrava e a Chrysler, na época recém-adquirida pela alemã Daimler, dava início a um ambicioso processo de reestruturação. Seria, portanto, com certo estupor que um analista transportado daquele período assistiria aos pedidos de concordata da GM e da Chrysler, ocorridos entre os meses de abril e junho deste ano. (Ambas saíram dessa condição recentemente.) A Ford sofre os efeitos nefastos da crise nos Estados Unidos e não pode ser considerada um exemplo de boa gestão e eficiência. Mas deu um sinal poderoso de sua condição diferenciada ao recusar o socorro financeiro oferecido pelo governo americano -- socorro, aliás, recebido como única chance de salvação por GM e Chrysler. "Logo no início, achamos que, caso a recessão se agravasse, poderíamos precisar do auxílio do governo", disse a EXAME, por e-mail, William Clay Ford Jr., presidente do conselho de administração da Ford, em sua primeira entrevista a uma publicação brasileira. "Felizmente, foi possível evitá-lo."
Tornar-se a exceção em meio ao caos já seria, por si só, um feito notável. O que chama a atenção nesse caso foi a maneira pela qual a empresa conseguiu ficar em pé sem a ajuda governamental. Ao longo de sua história de 106 anos, a Ford enfrentou vários momentos difíceis -- passou por todos eles, em geral, graças ao lançamento de carros que caíam no gosto do consumidor. Tão logo o frenesi nas vendas passava, voltava à situação anterior. Como as outras grandes montadoras americanas, a Ford foi durante muito tempo um doente em estado grave que recusava a ideia de que um dia poderia morrer. Essa percepção parece ter mudado há cerca de três anos. Na época, a montadora hipotecou todo o seu patrimônio: fábricas, prédios e até a própria marca. O plano era obter capital suficiente para realizar uma série de investimentos nas fábricas e em novos projetos. As hipotecas renderam 23 bilhões de dólares. Em paralelo, a Ford colocou à venda as marcas Jaguar e Land Rover, negociações que renderam mais 2,3 bilhões de dólares, ambas realizadas em um momento em que a economia mundial vivia um período de euforia. "Essas decisões garantiram caixa suficiente para que a empresa atravessasse a crise", afirma Flávio Bartman, sócio da consultoria Carnegie Hill Global Advisors.
Embora favorecida pelos deuses que regem o destino das empresas, não foi apenas por um golpe de sorte que a Ford obteve um desempenho melhor do que as suas irmãs americanas. Ao constatar a condição de mortal do negócio, Bill Ford, como é conhecido, e seus executivos partiram para mudanças de estratégia e de gestão. Com dinheiro em caixa, a Ford pôde investir no que realmente importa do ponto de vista do mercado: os carros. Entre 2007 e 2009, lançou novas versões de modelos consagrados e colocou em operação uma série de projetos que devem chegar às concessionárias nos próximos meses -- entre eles o novo Mustang e o novo Taurus. A melhoria do portfólio veio acompanhada de avanços nos padrões de qualidade. Segundo levantamento da consultoria JD Power & Associates, os veículos da Ford hoje contam com índices superiores aos de marcas como BMW e Audi. Ao mesmo tempo que expandia a linha, a Ford reduzia estruturas. Nos últimos três anos, 17 fábricas foram fechadas e mais de 50 000 empregos foram extintos. Benefícios concedidos a executivos -- como carros e viagens -- foram reduzidos.
Fonte: http://portalexame.abril.com.br/degustacao/secure/degustacao.do?COD_SITE=35&COD_RECURSO=211;831&URL_RETORNO=http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0948/negocios/sobrevivente-detroit-486089.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário